Acerca da social-democracia | Adelino Fortunato

17-10-2019

A social-democracia tornou-se tema de debate na vida política portuguesa a propósito da natureza de alguns partidos. Recorde-se que a social-democracia é uma corrente antiga do movimento operário mundial com início na segunda metade do século XIX e passou por várias fases. Nos seus inícios tratou-se de um movimento assumidamente marxista e plural, onde pontificaram Lenine no Partido Operário Social-Democrata Russo ou Rosa Luxemburgo no Partido Social-Democrata Alemão (o atual SPD), ambos na ala revolucionária, ao lado de teóricos mais moderados como Bernstein ou Kautsky.

Sob a influência deste último o programa do congresso de Erfurt de 1891, não afastando a necessidade de uma revolução socialista, cedeu lugar a uma ação reformista que acabaria por se tornar predominante, criando a ideia segundo a qual o capitalismo se encontrava numa crise tão profunda que a luta parlamentar até poderia ser suficiente para o derrubar. O próprio Engels fez críticas detalhadas a partes do programa e a crise de identidade da social-democracia arrastou-se até 1914 aquando da votação pelo SPD no parlamento ao lado dos representantes da burguesia a favor dos créditos para a participação da Alemanha na I guerra mundial.

A revolução russa de 1917 e a formação da III Internacional provocaram uma cisão mundial que deu origem aos partidos comunistas, enquanto a social-democracia permaneceu na II Internacional (hoje designada Internacional Socialista). Esta divisão atravessou o período entre as duas guerras mundiais com enormes vicissitudes, nomeadamente quando socialistas e comunistas se digladiaram por iniciativa destes últimos favorecendo a ascensão e a tomada do poder por Hitler na Alemanha (a famosa teoria da "social-democracia irmã gémea do fascismo" desenvolvida por Estaline).

A reconstrução do pós-guerra fez-se na Europa recorrendo às ideias dominantes dessa época, baseadas na intervenção do Estado com políticas keynesianas para assegurar o pleno emprego, num setor público forte nas áreas fundamentais da economia, na criação de um Estado Social e de uma proteção alargada dos trabalhadores. Este modelo foi predominantemente adotado pelos partidos social-democratas nórdicos, alemão ou inglês, mas foi compartilhado pelos partidos Democratas Cristãos que os renderam no poder sempre que os social-democratas foram atingidos pela erosão eleitoral.

Tratou-se de uma fase longa de crescimento económico que durou até aos anos 70, altura em que as crises petrolíferas e o esgotamento do próprio modelo abriram caminho à emergência do paradigma neoliberal hoje dominante. Este carateriza-se por privatizações e liberalização de setores fundamentais anteriormente públicos, pela prioridade ao controlo dos preços e à tentativa de implantação de um Estado Social residual orientado para a atenuação da pobreza em vez da sua erradicação e para a liberalização do mercado de trabalho usando o desemprego como variável de ajustamento.

Mais uma vez a social-democracia converteu-se às ideias dominantes e, desta vez, tornou-se neoliberal (ou social-liberal, segundo alguns). Para isso concorreu decisivamente Tony Blair e o New Labour inspirando o SPD de Schroeder e a sua política de austeridade e diminuição dos salários dos trabalhadores, mas essa influência estendeu-se a muitos outros países. Esta trajetória introduziu uma enorme crise em partidos como o PASOK grego ou o PS Francês que quase desapareceram, crise à qual escapou momentaneamente o PS português de A. Costa por causa da Geringonça, depois de Sócrates ter aplicado austeridade.

Se regressarmos ao universo partidário português atual poderemos perceber como PCP e Bloco de Esquerda ficaram fora da contaminação pelo modelo neoliberal dominante e como isso os ajudou. No caso do Bloco ajudou-o a crescer e quanto ao PCP permitiu-lhe resistir à crise global que se instalou após a queda do Muro de Berlim e ao desaparecimento da União Soviética. E ajuda-nos também a entender que ninguém se pode autodenominar de social-democrata, a não ser o próprio PS, uma vez que a social-democracia foi mudando ao longo de mais de um século de existência. Afinal de que social-democracia estamos a falar?


Adelino Fortunato
Professor Universitário | Dirigente do Bloco de Esquerda.


Imagem: Timon Studler on Unsplash

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