Intervenção inicial | V Conferência Nacional Bloco de Esquerda Adelino Fortunato
A URGÊNCIA DO DEBATE
Poder-se-á perguntar, por que razão participamos nesta Conferência, uma iniciativa cujos
objetivos nunca ficaram inteiramente claros, num partido totalmente controlado pelo
aparelho e praticamente sem margem para ser influenciado. E a resposta é simples, não é de
agora que reclamámos um debate que vá para além da gestão diária da intervenção do Bloco.
Já no final do mandato da Catarina Martins como coordenadora, no momento que antecedeu
a última Convenção, elaborámos uma proposta detalhada de debates no interior da moção A,
a realizar em Lisboa, Porto e Coimbra, envolvendo os principais dirigentes do partido e
abarcando um leque variado de temas. Essa proposta, que chegou a ter a aceitação de todos
os convidados, acabaria por ser rejeitada pela direção da moção A. Mais tarde, propusemos na
Mesa Nacional a realização de uma Conferência Nacional para fazer o ponto da situação
política, cujo ciclo vinha dando sinais de mudança, como se acabaria por revelar nos atos
eleitorais mais recentes, mas foi igualmente rejeitada.
Essas propostas de debate foram motivadas pela insatisfação com a linha política que a
direção foi imprimindo à orientação do nosso partido. Fomos publicando declarações políticas
subscritas por dezenas de camaradas, algumas no bloco.org, apontando para caminhos
alternativos, nomeadamente acentuando as ideias de revisão do modelo de relacionamento
com os novos movimentos sociais e da necessidade de construção de um partido de massas,
com autonomia estratégica, para uma transformação radical da sociedade. O atual documento
alternativo que apresentamos a esta Conferência não é circunstancial e, sobretudo, não é
resultante de qualquer outro detalhe. É o aproveitamento de uma rara oportunidade de
debate político sobre temas de fundo que, normalmente, fica retido no interior das frações
que dominam toda a atividade do Bloco e é também uma demonstração de que apesar das
limitações apontadas estamos disponíveis para prosseguir a intervenção no Bloco de Esquerda,
como mostram os notáveis contributos de Marinho da Silva e Nuno Pinheiro no Boletim II.
UM MODELO DE DISSOLUÇÃO POLÍTICA
É preciso intervir em movimentos anti racistas, feministas, ecologistas ou LGBTQIA+, por
exemplo. Mas, só o derrube do capitalismo e a tomada do poder pelo proletariado poderá
criar as condições para que estas causas tenham inteiro sucesso. O derrube do capitalismo, por
si só, não garante que isso aconteça. Mas a perenidade daqueles movimentos é a garantia de
que o socialismo que queremos, mesmo após a tomada do poder, acabará por lidar com
agentes sociais fortes, organizados e capazes de sustentar uma agenda de intervenção com
efeitos práticos.
Quando o Bloco abdica da luta contra o capitalismo fica-se pela luta pelos direitos humanos,
com traços indistintos em relação às associações que se instalaram no terreno social. Isto
aponta para dissolução política, o Bloco tornou-se uma "câmara de eco" dos novos
movimentos sociais, uma ala de um movimento mais geral que presta um serviço insubstituível
aos mesmos, convocando ou participando nas suas iniciativas e dando expressão eleitoral e
política aos seus dirigentes ou figuras públicas.
A segunda questão relaciona-se com a natureza interclassista dos novos movimentos sociais. O
facto de a classe trabalhadora ser composta, para além de homens brancos, por negros e
negras racializados, por lésbicas ou homossexuais discriminados, por vítimas prioritárias das
alterações climáticas e por outros segmentos oprimidos da população trabalhadora, não
resolve automaticamente a articulação entre as questões de raça, género e de classe na luta
contra o capitalismo. No "capitalismo realmente existente", para usar uma expressão em voga
no Bloco, as questões de exploração e opressão interligam-se quando descrevemos a
diversidade da população trabalhadora, mas não resolvem o problema tático e estratégico de
saber quem lidera e com que projeto, O proletariado tem um papel de liderança na
transformação social que desejamos ajudar a promover.
São dois modelos distintos. Em vez de um somatório de causas, devemos contribuir para uma
espécie de causa única desdobrada em várias frentes (as "lutas de classes", na expressão de
Marx no Manifesto). O proletariado é a única classe social capaz de propor um projeto radical
de transformação da sociedade à imagem das suas condições materiais de vida baseadas na
solidariedade e na interdependência. É esta a lógica associada à ideia marxista de hegemonia
formulada por Kautsky, continuada por Lenine e desenvolvida por Gramsci a propósito da
articulação do proletariado com as designadas "classes subalternas". O combate vitorioso do
proletariado nunca foi apenas classe contra classe.
A QUESTÃO DO PARTIDO
O ciclo político mudou em Portugal e as pressões desagregadoras sobre as formações políticas
mais débeis à esquerda trouxeram de volta a necessidade de consistência ideológica e política
para resistir. Por outro lado, alguns setores da esquerda mundial que fizeram experiência das
vagas de mobilização da segunda década do século XXI em várias partes do mundo abriram um
debate acerca da eficácia na organização política. Neste sentido, a hipótese de renascimento
da forma-partido está associada, também, à hipótese da reactualização do socialismo.
A conversão do Bloco de Esquerda em uma espécie de "movimento dos movimentos", sem
que o movimento dos trabalhadores tenha um papel de liderança, teve consequências
negativas de vários pontos de vista. Desde logo, porque a pressão para a dispersão que
aparenta ser um ganho em termos de amplitude na abordagem à crítica ao capitalismo e à sua
estrutura, converteu-se em perda de profundidade daquela mesma crítica. O Bloco de
Esquerda hoje é um partido bastante moderado, confundindo-se frequentemente com a
restante esquerda social-democrata, nomeadamente o Livre e o PS.
O "movimento dos movimentos", como o próprio nome indica, tem como principal missão ser
um instrumento de conexão dentro de uma ecologia organizativa composta por muitos
agentes com objetivos próprios. O espaço que é reservado a este partido não é o da
autonomia estratégica para fazer valer no terreno da intervenção um projeto de articulação
das "classes subalternas" com vista a uma transformação revolucionária da sociedade. É muito
mais a de acompanhar, a de ajudar a "criar movimento", o puro ativismo à Bernstein: "o
movimento é tudo, o objetivo final não é nada".
Hoje, precisamos de fazer um debate aberto sobre o partido como instrumento para derrubar
o capitalismo, tendo em conta as mutações das sociedades capitalistas, a própria mudança nas
classes sociais e a diferenciação dos movimentos sociais. É preciso desenvolver uma forma-
partido adequada para lidar com a especificidade dos movimentos sociais contemporâneos
conservando a liderança estratégica do proletariado. Um dos grandes problemas da esquerda
atual é a incapacidade em articular a luta por uma mudança sistémica da sociedade com a
forma de organização política adequada a esse objetivo. É preciso procurar na tradição e na
experiência dos movimentos revolucionários do passado e nos debates fundadores da
esquerda a inspiração que nos tem faltado. É também com esse objetivo que aqui estamos,
entre muitos outros que procuraremos explicitar.