Converter a ameaça em oportunidade

24-11-2021

A crise gerada pelo chumbo do OE de 2022 levantou, mais uma vez, problemas de identidade do Bloco de Esquerda como partido de esquerda radical anticapitalista. Afinal, para que serve o Bloco? Para assegurar a sobrevivência de um governo do PS, qualquer que seja a sua orientação política, ou para lutar por um projeto autónomo e transformador da sociedade portuguesa? A votação contra o OE de 2022 (e de 2021), que abriu caminho a eleições antecipadas, aponta para esta segunda opção. Porém, muitas vezes, a falta de definição ideológica e estratégica do Bloco conduz os nossos apoiantes a admitirem a primeira. Como será possível superar esta ambiguidade de propósitos? Este é também o debate acerca da luta pela reconfiguração da esquerda e da afirmação de um papel de liderança do Bloco de Esquerda nesse processo.

UM CONFRONTO QUE SE ADIVINHAVA

A Geringonça não era, para nenhum dos partidos envolvidos, um fim em si mesma. Para o Bloco foi um instrumento destinado a conferir ao movimento social as condições mínimas para reconquistar capacidade de mobilização e inverter a relação de forças entre as classes na sociedade portuguesa. Para o PCP foi um instrumento de influência destinado a parar a ofensiva dos governos de direita sobre os sindicatos e a legislação do trabalho, acompanhado de algumas benesses para setores do seu eleitorado tradicional. Para o PS foi simplesmente o trampolim para catapultar António Costa como primeiro-ministro e facilitar o crescimento do partido em direção a uma maioria de votos.

Depois de quatro anos de experiência governativa estável do PS apoiada pelo Bloco e pelo PCP, a direita fragmentou-se, permaneceu neutralizada e António Costa ganhou as eleições de 2019. Este foi o sinal que abriu ao PS o sonho com uma maioria absoluta, objetivo viável desde que fosse possível sugar votos ao PCP e, sobretudo, ao Bloco de Esquerda. A partir desse momento António Costa passou ativamente para o processo de descredibilização do Bloco e de tutela paternalística do PCP, ensaiando pretextos variados para uma crise política. Estas tentativas foram sucessivamente travadas por Marcelo ou pelas próprias vicissitudes da vida política, mas a indisponibilidade para reeditar uma segunda experiência de Geringonça radica também nesta ideia de rutura em preparação.

À luz dos objetivos enunciados, o Bloco só teria interesse em aceitar um novo acordo à esquerda se ele tornasse possível eliminar os vestígios da Troika na legislação laboral, no sistema de proteção social e combate à pobreza e introduzir novos temas relacionados com transformações estruturais, o relançamento do investimento público, a reforma dos serviços públicos, o controlo público do setor financeiro, a nacionalização de empresas e a transição energética com vista ao combate às alterações climáticas. Como tudo isto seria difícil de conseguir, a fragilidade da solução política saída das eleições de 2019, claramente denunciada pelo nosso voto contra o OE de 2021, só nos poderia sugerir a preparação das melhores condições para a eminente queda do governo e a emergência de uma crise política.

Esta crise, que acabaria por se confirmar na votação do OE de 2022, cria oportunidades únicas de clarificação política, apesar de trazer riscos importantes para toda a esquerda, que ninguém pode menosprezar. Face ao estádio de recomposição em curso da direita e tendo em conta o capital político acumulado por Bloco e PCP no ciclo anterior em busca de soluções na governação, abre-se um formidável espaço de confronto com a direita e de debate com o PS com condições que se podem explorar. Tudo vai depender da nossa capacidade para fazer passar para a opinião pública uma mensagem positiva, de esperança, baseada em firmeza nos propósitos estratégicos sem abandonar a ideia de disponibilidade tática para entendimentos com a restante esquerda. Com alguma criatividade, o desgaste criado pelo impasse atual na relação entre os partidos de esquerda pode evidenciar também as divisões existentes no seu interior.

Esta oportunidade pode ganhar novos contornos se o resultado eleitoral confirmar uma relação eleitoral semelhante à atual, com o PS como partido mais votado sem maioria absoluta. Costa e Marcelo, num cenário com Rio na liderança do PSD (ou mesmo com Rangel), podem ser tentados a reeditar uma versão informal de Bloco Central para construir uma maioria estável em direção às reformas desejadas pela direita europeia na Segurança Social e no setor da saúde que favoreçam os privados e a lógica financeira e dos mercados, conservando a atual legislação laboral da Troika. O Bloco deve colocar no debate público a necessidade de o PS escolher entre dois caminhos: governar à esquerda com um acordo com Bloco e PCP, ou governar à direita para subverter o atual modelo dos serviços públicos tão debilitado por sucessivos cortes, cativações e incapacidade de reforma. Em qualquer dos casos a situação do PS não será pacífica e poderá dar lugar a clivagens profundas.

SER ALTERNATIVA NO PLANO POLÍTICO

A Geringonça concretizou uma tática de unidade em período de refluxo do movimento social com vista ao desmantelamento dos mecanismos criados pela Troika, ao afastamento do poder da direita e ao relançamento da capacidade de mobilização das massas. Como consequência desta tática as hesitações da direção do PS provocariam diferenciações no seu interior e na relação com os seus apoiantes. Pode dizer-se que uma parte destes objetivos foi atingida, mas no que respeita ao apagamento dos vestígios da Troika isso não aconteceu integralmente em áreas importantes.

O desafio lançado pelo Bloco em 2019 para uma Geringonça II só podia significar a retoma daquela trajetória não concluída e a ampliação dos objetivos do novo acordo em direção a outras ambições mais avançadas. Um acordo público mais ousado, que articulasse reivindicações pela reposição de direitos retirados pela Troika com transformações estruturais em todas as áreas poderia ter ajudado a criar diferenciações, simultaneamente, no PS e no PCP, oferecendo a muitos trabalhadores a noção de alternativa global que hoje o Bloco ainda não conquistou.

Quando a direção do PS recusou a iniciativa do Bloco, declarou expressamente o fim da Geringonça. Essa falta de entendimento deveria ter sido muito mais enfatizada, acompanhando-a da divulgação de um programa de trabalho. Tinha sido inaugurada uma nova era, pós Geringonça, nas relações à esquerda. Bloco e PCP deixavam de ter compromissos quanto à aprovação de orçamentos e à necessária sobrevivência do governo, ficando o seu sentido de voto, a cada momento, dependente da capacidade de integração nas negociações orçamentais e noutras oportunidades do conteúdo daquele mesmo programa. Sem desejar a queda do governo de António Costa, o Bloco não poderia ser associado automaticamente à sua manutenção a qualquer preço, nem a sua agenda limitada a aspetos ligados à negociação do orçamento.

A dificuldade de muitos setores que acompanham o Bloco em aceitar o voto contra o OE de 2022 radica na dificuldade em entenderem a relação de António Costa com a restante esquerda, na criação das condições mais favoráveis para a rutura e a conquista de uma maioria absoluta. As divisões na direita tradicional e o crescimento do Chega deram-lhe a oportunidade de cavalgar esse objetivo. Mas, essa manobra também foi facilitada pelas nossas hesitações, pela falta de iniciativa política na condução do processo de interpelação que acompanhou a proposta para uma segunda Geringonça e a impreparação para uma rutura. Em vez de condicionarmos o governo de forma convincente para o resto da legislatura, acabámos constrangidos pela necessidade de explicar a não aprovação do OE que acabou por derrubar o governo.

A pandemia do Covid - 19 introduziu muito ruído, por que concentrou a vida política nas necessidades de resposta de emergência (que o Bloco acompanhou), subalternizou as questões estruturais e colou a sociedade portuguesa ao desempenho do primeiro-ministro, das autoridades de saúde e do Serviço Nacional de Saúde. Apesar da crise social, das desigualdades crescentes, da pobreza e das brechas reveladas pelos serviços públicos e pelo governo, a condescendência popular face aos impactos da calamidade e à dificuldade de os combater, num primeiro momento, protegeram o executivo de um acentuado declínio. Mas não evitaram, uma vez controlada a expansão da pandemia por intermédio da vacinação, alguma erosão que acabaria por se revelar nas eleições autárquicas.

A reação de António Costa na sequência do cenário de chumbo do OE 2022 e convocação de eleições antecipadas é também uma tentativa de conter este declínio, recuperando o controlo da situação política, condicionando todos à esquerda e à direita e conquistando a hipótese de abrir o ciclo para uma nova legislatura de quatro anos aditivada pelos fundos europeus. É uma jogada de alto risco, sobretudo porque se pode virar contra o próprio António Costa, tornando evidentes os seus propósitos de hegemonização e de corte das pontes com a restante esquerda. E Bloco e PCP, sem terem feito tudo aquilo que se impunha para preparar um cenário de rutura (que um dia teria necessariamente de acontecer) nas melhores condições, podem resistir melhor do que se poderia antecipar numa primeira análise.

REORGANIZAR A ESQUERDA

Muitos dos nossos apoiantes veem no Bloco um bom instrumento de moderação das aventuras neoliberais do PS, mas não nos identificam com uma alternativa global a esse mesmo PS, ou ao PCP, por motivos diferentes. O que nos tem diferenciado do PS são as propostas de alteração da legislação laboral, igualmente defendidas, nos mesmos termos, pelo PCP. A grande diferença, no confronto com o Bloco, é que o PCP é incapaz de se ligar aos novos movimentos sociais e de fazer o balanço do desmoronamento da União Soviética, caindo numa tática de sobrevivência. A Geringonça deixou um rasto de minimalismo que precisa de ser compensado com propostas de transformação da sociedade, revelando de forma mais clara a natureza anticapitalista do projeto do Bloco de Esquerda. Só assim se poderão criar condições para a reorganização da esquerda que ajude o Bloco a ganhar um espaço de liderança que lhe escapa em domínios essenciais.

Uma tática do Bloco mais ousada, que articule as reivindicações de emergência e do programa mínimo com reivindicações e transformações estruturais, poderá ajudar muitos trabalhadores a identificar a noção de alternativa global que hoje o Bloco ainda não tem. A obediência de António Costa à cartilha neoliberal da União Europeia e o tacticismo do PCP, incapaz de pensar para além do estritamente necessário para adiar o declínio, são ingredientes que não se repetirão quando o PS passar para a oposição e se unir no combate a um governo de direita. Esta perspetiva de reorganização da esquerda, apostada na criação de um polo de referência para muitos setores que não se reconhecem na orientação de outras formações políticas à esquerda, teria igualmente a virtualidade de atrair ativistas dispersos e grupos de intervenção para um projeto de recomposição e de mudança da relação de forças no interior da esquerda.

Isto não significa que o Bloco se deva concentrar numa tática vanguardista dirigida apenas à conquista dos setores mais radicalizados e politicamente mais exigentes da esquerda. Essa via iria remeter-nos para o campo da irrelevância política, que atinge os pequenos grupos que cultivam o sectarismo. O Bloco é um partido com influência de massas, dá sensação de utilidade a um espetro largo do campo popular e não pode abandonar essa postura. A interlocução com os trabalhadores mais pressionados pelo impacto da crise e a apresentação de propostas para atenuar a sua privação dão-nos a ligação com o movimento social que não somos capazes de construir pela via da implantação no terreno. Porém, quando nos limitamos a fazer isso, corremos o risco de ficar condicionados pelo nível de consciência das camadas mais recuadas do movimento social e aprisionados pelo reformismo e pelo economicismo. A dinâmica de resposta do Bloco à emergência, se não for articulada com propostas para a transformação da sociedade, é um caminho aberto para a diluição política e para a incapacidade em mudar realmente o rumo dos acontecimentos.

Como consequência das dificuldades tradicionais de implantação, o Bloco não tem condições para dirigir as lutas dos movimentos sociais, sobretudo no movimento laboral. Esta limitação está associada também a um problema mais geral da intervenção do Bloco, a ausência de uma tática de construção de uma alternativa no movimento laboral, a coluna vertebral do nosso trabalho nos diferentes movimentos sociais. Não há, nunca houve, uma orientação para os nossos ativistas fomentarem uma corrente alternativa reagrupando as sensibilidades mais combativas, dinâmicas e críticas do movimento sindical, abrangendo direções sindicais, membros de Comissões de Trabalhadores e ativistas em geral, filiados ou não na CGTP ou UGT, ou independentes. A vantagem dessa proposta seria construir um espaço de referência para a intervenção e a afirmação política de uma área do mundo laboral dispersa e sem condições para influenciar a prática sindical da CGTP ou da UGT, facilitando a vida ao sectarismo e ao conformismo do PCP ou dos sindicalistas do PS e outros.

Uma corrente deste tipo teria igualmente impacto em outras esferas da intervenção política e seria uma corrente político-sindical, no sentido em que temas específicos de política mais geral poderiam ajudar a construí-la a cada momento. O agrupamento de forças associado a esta dinâmica poderia contribuir para que o Bloco ganhasse capacidade de atração de grupos e outros ativistas dispersos, para participarem em plataformas de intervenção com maior visibilidade e capacidade de mobilização do que aquela que o Bloco dispõe neste momento. Seria um bom instrumento também para contagiar a mobilização nos diferentes movimentos sociais e um elemento de pressão sobre o PS e o PCP.

CONCLUSÃO

Apesar do voto contra o OE de 2021, o Bloco não conseguiu introduzir na sociedade portuguesa a ideia de fim da Geringonça associado à recusa do PS, em grande medida porque a viabilização daquele orçamento pelo PCP adiou por mais um ano o que se adivinhava: a queda do governo. O choque que se seguiu nas fileiras de toda a esquerda coincide com a descoberta, finalmente, por essa mesma esquerda, de que a Geringonça, de facto, já não existia e de que há diferenças e fraturas que não se podem apagar apenas com a ameaça de um putativo regresso da direita ao poder. A divisão interna do PCP, quanto ao sentido de voto do OE de 2022, também ilustra este dilema. Aquela ameaça é real, mas devemos demonstrar que não é uma fatalidade. Tudo vai depender de o Bloco de Esquerda ser capaz, ou não, de transformar essa ameaça numa oportunidade para mudar a própria esquerda. Consolidando-se como partido para lutar pela liderança em todos os terrenos, associado a um projeto de transformação social identificado com a esquerda radical e anticapitalista.

R.A.D.A.R.  - Rede de ativistas para Debate, Ação e Reflexão no combate pelo Socialismo
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