Pelo Partido de Massas
SALVAR O BLOCO DA DISSOLUÇÃO POLÍTICA
O Bloco está numa trajetória alarmante no que respeita ao seu futuro. Não são as perdas
eleitorais sucessivas que estão em causa (legislativas, Açores, Madeira, europeias), é a
ausência de linha política, a pura navegação à vista e a falta de debate democrático. É o
próprio Bloco de Esquerda enquanto projeto político que vem dando sinais de esgotamento
face a uma conjuntura política desfavorável e muito alterada. Criado após a vaga descendente
das mobilizações do 25 de abril, procurou tirar partido da viragem neoliberal do PS e da crise
do PCP enquanto partido estalinista, pós queda do Muro de Berlim. Porém, ao fazê-lo a partir
da afirmação de uma variante (não liberal) de social-democracia, assumiu o risco de ser
devorado pela própria crise desta última e de não atingir aquele objetivo.
No decorrer da sua evolução, houve uma primeira fase onde os vestígios da memória dos
acontecimentos revolucionários de 1974/5 ainda se fizeram sentir, nomeadamente na
declaração política de fundação. Porém, os erros na abordagem tática (de tipo "terceiro
período" dos partidos comunistas, que fez da social-democracia um inimigo idêntico ou mais
perigoso que a própria direita) à crise potencial do PS criaram uma impossibilidade de
crescimento que acabou por empurrar o Bloco de Esquerda para a narrativa do "partido da
luta toda", isto é, uma espécie de barriga de aluguer dos novos movimentos sociais, que lutam
pelas causas dos direitos humanos. Desta forma criaram-se as bases para o clima de dissolução
política em que se vive e os resultados estão à vista. Sem identidade política, pode tornar-se o
partido de causa nenhuma.
Pelo meio surgiu o balão de oxigénio da Geringonça. Forçada pela pressão dos acontecimentos
e à revelia da linha política em vigor á época, que previa um entendimento preferencial com o
PCP, ela foi introduzida pelo secretariado da Comissão Política e pela direção de campanha em
pleno período eleitoral sob a forma de desafio ao PS de António Costa e foi a resposta
adequada às circunstâncias. Porém, as marcas desta experiência não mais deixaram de se fazer
sentir, dada a fragilidade ideológica do Bloco do Bloco de Esquerda. Criou-se uma familiaridade
com os dossiês da governação, por parte dos deputados e da direção, que reforçou a
componente economicista, negocial, social-democrata do partido, só possível de ser valorizada
no quadro de entendimentos com o PS. Mas como estes entendimentos são uma ameaça à
própria existência do Bloco de Esquerda, rapidamente se regressou à autodefesa pela
abordagem de "terceiro período", que é contraditória com aquela postura negocial e
ininteligível para os aderentes.
Estas dificuldades não se ultrapassam com correções de pormenor ou ajustes de circunstância.
São componentes estruturais que implicam uma profunda revisão da linha política para
afirmar uma identidade socialista na luta contra o capitalismo, bem como uma reorganização
interna para articular o partido com os objetivos de transformação social que procure
promover. Precisamos de um debate fraterno, democraticamente preparado, motivador e
abrangente, que dê reais oportunidades de participação a todas as sensibilidades, incluindo as
mais minoritárias, com reflexo na composição de todos os órgãos do partido. O tempo dos
encontros e das convenções para cumprir calendário, ou para funcionar como válvula de
escape do descontentamento, ou para confirmar o núcleo dirigente infalível está esgotado.
EUROPEIAS, UMA CAMPANHA ESVAZIADA
A "Europa por Ti" é um slogan sem conteúdo político explícito, que cavalga subliminarmente a
aceitação por parte da população portuguesa do projeto europeu, como ele existe, sem o pôr
em causa. É o tipo de mensagem que qualquer outro partido, de esquerda ou de direita,
poderia ter adotado. O comício de encerramento da campanha em Almada foi convocado pela
Paz, pela Igualdade, pela Habitação e pelo Clima. Haverá alguém à esquerda (e mesmo em
setores de direita) que esteja contra isto? A campanha em que participámos foi dominada pela
luta pelos direitos humanos (imigração, refugiados, racismo, mulheres, etc) sem qualquer
referência à europa capitalista e à necessidade de um projeto socialista. Ou seja, a Europa foi
tratada como uma entidade acima das classes sociais e da luta contra o capitalismo, com o
objetivo de atingir transversalmente os eleitores e ganhar votos. Foi uma campanha recuada,
indiferenciada face à restante esquerda e sem identidade política, mesmo com o todo o
empenho pessoal da Catarina Martins. Não admira que o PS e o Livre tenham penetrado na
nossa base de apoio (e mesmo a IL).
PARTIDO DE MASSAS OU PARTIDO DE NICHO?
O refluxo da situação política foi acompanhado de um recuo no grau de profundidade da
crítica que se fez ao capitalismo, sendo que nela a luta de classes teve um papel meramente
acessório e a ideia de socialismo esteve completamente ausente. Este tipo de cultura política,
que faz do somatório horizontal de causas o objeto da nossa intervenção, dá uma sensação de
abrangência e de alargamento da base de influência do partido, sobretudo no plano eleitoral.
Trata-se falar para todos os oprimidos pelos flagelos do capitalismo a partir de um mesmo
plano de relevância, mas sem narrativa global ou elemento estruturante, o que torna a
mensagem política do Bloco ineficaz e incompreensível.
Sem referência a uma totalidade que só pode ser encontrada na estrutura do capitalismo, na
luta de classes e no papel determinante do proletariado para uma grande transformação
social, o discurso do Bloco de Esquerda converteu-se num conjunto disperso de "especulações
de um sujeito indeterminado" contra um adversário verdadeiramente não identificado.
Tornou-se indiferente para as massas, só apoiado por uma "vanguarda" muito restrita,
disponível para acompanhar iniciativas sucessivas que preenchem acima de tudo a agenda do
espaço mediático. Neste sentido, ao contrário das expectativas, o "partido de todas as causas"
em vez de ser um partido de massas, tornou-se um partido de nicho.
PARTIDO DE MASSAS E PARTIDO VIRTUAL
As limitações de implantação social do Bloco de Esquerda são bem evidenciadas pela diferença
entre os resultados eleitorais das legislativas e das autárquicas. O Bloco conquista,
normalmente, uma representação parlamentar que se poderá qualificar de "excessiva" face à
sua relevância de implantação no terreno social e nas organizações de massas. Esse milagre é
conseguido por intermédio de uma presença profissional nos media e nas redes sociais
alimentada pelo nosso aparelho central, que projeta na opinião publicada uma falsa imagem
de grande partido ou de partido de massas. Isso faz do Bloco um partido virtual, escravizado
pela pressão da agenda mediática, pela "sociedade do espetáculo", incapaz de perder tempo e
recursos materiais ou humanos para as tarefas menos visíveis da organização e da implantação
no terreno social.
Essa orientação não pode ser replicada no plano da intervenção local, pois aí não existem
condições para a sua aplicação no plano da imprensa escrita ou do audiovisual e as redes
sociais não têm peso suficiente para compensar esse défice. A reprodução local, por parte das
concelhias, nas redes sociais, de mensagens de propaganda emitidas pelo nosso aparelho
central não ganha projeção suficiente junto das populações. Isto mostra bem o falhanço do
Bloco de Esquerda como partido de massas e a dimensão residual da sua implantação. Este
enviesamento pressiona o partido para ser essencialmente um projeto de tipo parlamentar,
social-democrata, virado para entendimentos e para a negociação com o PS (mesmo que
mascarada por um criticismo acirrado) e para o reforço do aparelho central, em detrimento
dos objetivos de médio prazo de construção de um partido de massas para uma grande
transformação social.
SALVAR O BLOCO DA DISSOLUÇÃO POLÍTICA
A primeira tarefa é a libertação do Bloco da abordagem de "terceiro período" ao PS, uma
orientação defensiva, reveladora de insegurança, contraditória e que só facilita a vida aos
dirigentes social-democratas, colando-os às suas bases, exatamente o contrário do pretendido.
É contraditória, porque é seguida de propostas de unidade dirigidas a esse mesmo PS para
evitar o isolamento que aquela abordagem inevitavelmente gera. É nesta contradição que
medram experiências como as do Livre, que captam aquela franja que habitualmente oscilava
entre o Bloco e o PS, potencialmente captáveis de novo com uma orientação mais inteligente.
No confronto com o PS, o que está em causa não é a intensidade oposicionista, não é um
problema de quantidade, mas sim o modelo adotado ao serviço dos nossos objetivos de
captação de uma maioria dos trabalhadores para a construção do partido de massas para uma
grande transformação social.
A segunda ideia forte é a de que o Bloco precisa de construir um programa de combate ao
capitalismo em todas as suas vertentes, com vista à construção de uma sociedade socialista,
baseada na tomada do poder pelos trabalhadores e na nacionalização dos grandes meios de
produção. Esta será a base para uma transição ecológica e o combate às alterações climáticas,
a erradicação do racismo, das discriminações de género ou raciais e das desigualdades sociais
em geral. Sem esta diferenciação, as causas por onde se dispersa a nossa intervenção
convertem-se numa gama de lutas pelos direitos humanos, transversais a toda a esquerda,
protagonizadas pelos diferentes movimentos sociais. A unidade da esquerda, mesmo não
sendo um mero expediente ou um apelo desesperado de sobrevivência, na falta dessa clara
demarcação, é um convite à perda de identidade e à dissolução a favor do partido mais forte.
A terceira prioridade inadiável é a reorientação de objetivos para que o trabalho de massas, no
terreno, de implantação nos sindicatos, nas empresas e noutras organizações ou movimentos,
ganhe uma importância acrescida ao serviço da defesa dos trabalhadores e de todas as vítimas
de opressão pelo capitalismo e da construção do partido de massas. Isto significa orientação
política clara nesse sentido, tempo e recursos materiais e humanos desviados para tarefas com
menos visibilidade mediática imediata, mas mais compensadoras no longo prazo. Sem um
partido de massas articulado com uma estratégia de derrube do capitalismo e com um projeto
de socialismo, não é possível ir para além da resistência ou da mitigação dos "excessos" e das
injustiças desse mesmo capitalismo. Não faltam no terreno social movimentos e organizações
vocacionadas para esse tipo de intervenção e a sua expressão partidária à esquerda é a social-
democracia.
A quarta prioridade é um programa intensivo de formação política destinado a ajudar a tarefa
de construção do partido de massas para uma grande transformação social. Um programa que
retome os grandes debates da esquerda ao longo de dois séculos, nomeadamente a polémica
entre reforma ou revolução, a revisitação crítica das grandes revoluções, com destaque para a
revolução russa, a polémica acerca da teoria de organização revolucionária, em particular a
articulação entre partido e movimentos sociais, o socialismo como uma sociedade
verdadeiramente democrática e participativa, o papel do "sujeito histórico" de uma grande
transformação social à luz da atual configuração das classes sociais e outros. É muito mais
motivador organizar programas de formação estruturados em torno de temas e dos debates
definidores do património político e ideológico da esquerda, do que concentrá-los no perfil de
personalidades, como se fez no passado e se faz no presente.
Finalmente, o secretariado da Comissão Política determina toda a dinâmica de funcionamento
interno e de prestação pública do Bloco de Esquerda. Dessa forma tornou-se o centro do
poder efetivo, com traços de jacobinismo e de sobreposição em relação todos os órgãos
eleitos pelos aderentes, nomeadamente a Comissão Política. Este modelo tem largos
antecedentes na história das organizações socialistas e foi muito estudado, tendo em vista a
sua natureza antidemocrática e os perigos potenciais que encerra. Não é aceitável, depois de
tudo o que foi dito e escrito sobre este tema, que o Bloco de Esquerda persista numa prática
empobrecedora e asfixiante como esta. É preciso reforçar o prestígio dos órgãos eleitos, dando
à Mesa Nacional e à Comissão Política a direção efetiva do partido.
Estas devem ser as tarefas para o próximo período que se antecipa difícil num contexto
internacional de grande incerteza. A próxima Convenção deverá ser o momento e o espaço da
sua aprovação. O debate, até lá, tem que atravessar o Bloco, de alto a baixo, chamando os
militantes e simpatizantes que tantas vezes têm clamado por esta mudança.