Um novo ciclo de instabilidade
O mundo atravessa momentos de grande instabilidade. O crescimento da extrema-direita e das pressões autoritárias num ambiente de refluxo e de lutas defensivas anuncia um novo ciclo marcado pelo endurecimento do combate político. Quarenta anos de neoliberalismo e de globalização provocaram estragos de grande monta na sociedade e estão a funcionar como um desagregador do centro político e social em toda parte.
Um dos sintomas disso é a situação dos salários reais nos países desenvolvidos, que praticamente estagnaram nas últimas décadas, apesar do crescimento económico se ter acelerado e das taxas de desemprego terem diminuído substancialmente (nalguns países próximas do pleno emprego). Isto é a expressão do triunfo do projeto neoliberal de contenção do crescimento dos salários para níveis inferiores aos do crescimento da produtividade de forma a combater a queda da taxa de lucro.
Este processo de contenção não atinge apenas as camadas mais pobres, mas também as "novas classes médias", que foram duramente flageladas pela crise de 2007/9 e não recuperaram as condições de vida e de segurança que dispunham antes. A proletarização e fragmentação das classes médias está a desestruturar as sociedades dos países da Europa e dos Estados Unidos.
Era a estabilidade desta camada social que amortecia os confrontos entre os extremos, a burguesia e os menos favorecidos. Estes grupos intermédios da sociedade deixaram de ter perspetivas de segurança e de ascensão e, na ausência de um movimento operário e popular forte, ficaram disponíveis para alimentar o discurso antissistema de direita. É uma segunda vaga do contingente antissistema, que se adiciona aos desiludidos com a queda do Muro de Berlim e vítimas da desindustrialização.
Esta é uma das causas de fenómenos como Trump e o Brexit, e que facilitou a vida aos movimentos de extrema-direita. Estes vivem também da insatisfação profunda que a política neoliberal de austeridade está a provocar nos utentes dos serviços públicos descapitalizados, das infraestruturas degradadas, do abandono das zonas suburbanas e de província, do mundo rural e dos guetos.
Se somarmos as políticas públicas que retiraram instrumentos de luta aos trabalhadores (como os contratos coletivos de trabalho) e precarizaram os seus vínculos contratuais e as conceções triunfantes de Estado Social residual, que abandonaram a universalidade no acesso às transferências sociais, temos todo um arsenal para manter os trabalhadores em estado de necessidade permanente e disponíveis para trabalhar mesmo com salários muito baixos.
A instabilidade que carateriza o capitalismo hoje não tem apenas causas políticas e sociais, ela alimenta-se também do anunciado abrandamento do crescimento da economia mundial que aí vem e da possibilidade de novas bolhas especulativas conduzirem a uma crise de proporções idênticas à de 2007/9. Quando isto acontecer veremos novas camadas da população angustiadas com as suas condições de vida e com potencial para se aproximarem de quem lhes prometa algo diferente.
A esquerda deve tentar responder a isto de forma adequada para alterar a relação de forças.
EXTREMA-DIREITA E FASCISMO
Apesar de a situação política ter semelhanças com o que aconteceu nas décadas de 20 e 30 do século XX, quando se germinaram os movimentos fascistas na Alemanha e na Itália que irradiaram para outros países, há grandes diferenças. Para já, o confronto que a extrema-direita propõe é baseado nas motivações do momento e de cada lugar. A extrema-direita atual pretende ser "pós-fascista" ou "pós-ideológica", isto é, não tem novos mitos coletivos para propor em confronto com a "ideologia" da esquerda nem pretende ser "revolucionária" ou "anticomunista".
Há três caraterísticas dominantes nestes movimentos de extrema-direita: são contra a democracia liberal, a favor de uma noção étnica de Nação e contra o liberalismo societal (costumes). Daqui decorrem as tentativas de diminuir a separação de poderes nos países onde governam (Hungria, Polónia), a perseguição aos muçulmanos, o racismo, a xenofobia, a oposição à União Europeia e à globalização e o combate ao aborto ou ao casamento de pessoas do mesmo sexo. Mas também a exploração do descontentamento das populações face ao défice de democraticidade das instituições supranacionais que limitam a capacidade de controlo sobre as políticas de cada país.
Querem mobilizar o povo, incitam ao levantamento, propõem um despertar nacional. O povo deveria desfazer-se das elites corruptas, subservientes da globalização, culpadas do abandono dos interesses nacionais, responsáveis pela transformação das nações em espaços abertos a uma imigração descontrolada que levará à colonização pelos muçulmanos. O "mau" povo, por sua vez, é uma amálgama de imigrantes, muçulmanos e mulheres com véus ou habitantes dos subúrbios e negros, mas também feministas, defensores das alteridades sexuais, antirracistas ou ecologistas.
Existem variantes, apesar das intenções comuns profundamente reacionárias e antidemocráticas. Há movimentos dentro da extrema-direita que aceitam a homossexualidade por oposição ao Islão (que a condena), o caso de Pim Fortuyn e Geeert Wilders na Holanda. Em certas circunstâncias estes movimentos foram conduzidos até a defender direitos humanos (contra a obrigatoriedade do uso do véu ou a pena de morte) espezinhados nos países islâmicos.
Mas a grande diferença em relação ao que ocorreu no século XX é que hoje o movimento dos trabalhadores está muito mais enfraquecido, os partidos de esquerda (social-democratas e estalinistas) estão em recuo profundo, os sindicatos são mais débeis e não há nenhuma ameaça iminente de revolução socialista.
O fascismo foi um último recurso da burguesia para destruir a força dos trabalhadores e teve custos sociais, económicos e políticos brutais. Hoje, excetuando o caso brasileiro com Bolsonaro, a burguesia ainda não precisou destes movimentos para impor a sua ordem. Ela é preservada pela política neoliberal e pelas instituições que a aplicam (BCE, Comissão Europeia, FMI). Só se a situação política se degradar muito, a extrema-direita poderá ser a alternativa assumida (por exemplo, com a desagregação da União Europeia, o equivalente europeu ao caos social que se instalou no Brasil de Bolsonaro). Recorde-se que na ascensão do fascismo havia um desemprego massivo na Europa e hoje as taxas de desemprego são baixas.
VARIANTES DA EXTREMA-DIREITA
No contexto europeu há uma diferença entre os países do Leste e os restantes quanto à forma como recorrem ao nacionalismo. Os primeiros encontraram na queda do Muro de Berlim uma oportunidade para renascer os nacionalismos anteriores às guerras mundiais. A União Europeia foi tolerante com estas atitudes, encontrando legitimidade para elas na vontade de estes países reporem uma consciência nacional reprimida durante décadas de opressão na União Soviética e muito antes disso (século XVI) ameaçada pela invasão turca. Na Ucrânia, por exemplo, num país flagelado por divisões profundas que até conduziram recentemente à alteração das fronteiras, reapareceram abertamente formações políticas neonazis.
Hoje, países como a Hungria ou a Polónia estão em aparente colisão com a União Europeia por violarem procedimentos dos regimes liberais, que aconselham a separação de poderes, e começam a registar-se atropelos à liberdade de expressão e a outras liberdades democráticas. Aqueles regimes encaminham-se para o autoritarismo crescente a par da retórica contra o liberalismo societal (costumes) e a imigração e a necessidade da construção de muros. Nestes países não existe imigração nem vai existir. A intenção é transformar os regimes políticos por dentro com modificações marginais, mantendo a fachada democrática, mas esvaziando-os de conteúdo.
Ainda no quadro europeu há partidos minoritários tipo AfD na Alemanha, Vox no estado espanhol, FPO na Áustria e outros nos países nórdicos que procuram ganhar espaço eleitoral para negociar com a restante direita (em perda) acordos, impedindo a social-democracia de chegar ao poder e introduzindo as reivindicações da agenda reacionária.
O caso de Marine Le Pen, por sua vez, é especial e mais parecido com o que deu origem ao atual governo italiano. O movimento União Nacional francês é o produto de uma extrema-direita herdeira da guerra da Argélia e existe há décadas. Tem, neste momento, a sua grande oportunidade porque o centro político e o Partido Comunista praticamente se desagregaram e a esquerda de Mélenchon não é suficientemente forte para ser alternativa global.
É difícil prever o resultado das metamorfoses da extrema-direita. Poderá evoluir como o Movimiento Social Italiano, que se converteu na Alianza Nacional em 1995 e depois se dissolveu sob a influência de Berlusconi, dando lugar a uma corrente conservadora tradicional. Ou poderá evoluir para uma radicalização que acompanhe a desestruturação social provocada pelos efeitos de uma desagregação da União Europeia e da globalização.
A EXTREMA-DIREITA EM PORTUGAL
As contradições da situação política ficaram bem expressas na crise francesa dos "coletes amarelos". Face ao aumento do imposto sobre os combustíveis e ao sentimento de abandono e degradação das zonas de província, gerou-se um movimento inorgânico que rapidamente chegou a Paris e a outras grandes cidades, contra a austeridade e as reformas liberais de Macron. A força do movimento e a ausência de interlocutores ao centro concentraram a confrontação no presidente da república e atraíram a extrema-direita e o movimento de JL Mélenchon.
Apesar da universalidade das motivações, as tentativas de réplica dos "coletes amarelos" redundaram em fracasso. A ausência de válvulas de escape para o descontentamento popular e o bloqueio institucional não encontraram equivalente noutros países, nomeadamente em Portugal. As tentativas da extrema-direita amplificadas pela comunicação social não foram capazes de se sobrepor ao sentimento de distância face a um caderno reivindicativo errado ou demagógico e a métodos de luta desajustados.
Isto mostra as especificidades da situação portuguesa. Por um lado, a existência de processos de luta (estivadores, enfermeiros, juízes, polícias), vitoriosos nalguns casos, mostra que vale a pena lutar, por outro lado o Bloco e o PCP funcionam também como interlocutores com os setores descontentes e, finalmente, a "geringonça" é uma solução política muito diferente de Macron.
Este episódio foi um laboratório para se perceber as potencialidades de crescimento da extrema-direita no nosso país. Hoje são limitadas, algumas orientações do governo nos últimos três anos ajudam a que assim seja e as instituições do sistema político continuam a ter alguma vitalidade e legitimidade, herança da revolução democrática do 25 de Abril, que mobilizou nas ruas e de forma generalizada a população. Esta frescura das instituições não existe no resto da Europa, onde o desgaste do sistema partidário é generalizado, e o contraste é flagrante com as transições negociadas das ditaduras espanhola e grega, que mantiveram no aparelho de estado agentes dos regimes depostos.
Isto foi suficiente para evitar um partido significativo de extrema-direita em Portugal, mas poderá não o ser no futuro. A degradação de infraestruturas e serviços públicos, a instabilidade das camadas intermédias, o défice de democraticidade da União Europeia e o contágio internacional acabarão por polarizar setores em torno da agenda política reacionária. No entanto, se não surgir um rastilho (escândalo de corrupção, processos judiciais que absolvam todos os arguidos, etc), a extrema-direita continuará a ter uma expressão reduzida em Portugal, ainda que a fragmentação da direita e a crise do PSD possam abrir espaço para reagrupamentos.
OPORTUNIDADES DO CICLO ELEITORAL DO BLOCO
Estas diferenciações terão expressão nas eleições europeias, dando força a uma corrente direitista e enfraquecendo a social-democracia e a democracia cristã. Porém, mesmo com os apelos de Trump, Victor Orban, Salvini ou Le Pen ao assalto às instituições da União Europeia, as dificuldades de entendimento têm sido grandes. Aliás, movimentos como a União Nacional de Le Pen ou o partido Finlandeses suportaram recentemente cisões e na Hungria o partido Jobbik, mais radical e neonazi que Orban, conquistou forte representação parlamentar.
A falência do centro, a verificar-se, é também uma oportunidade para uma alternativa radical à esquerda, pela democracia e o Estado Social, pela reposição dos direitos do trabalho, pela nacionalização de setores de interesse económico geral, pelo investimento público que apoie a transição energética, ambiental e urbanística, pela reestruturação da dívida externa e contra a corrupção. A participação do Bloco na candidatura Agora, o Povo cria boas perspetivas em termos eleitorais.
No plano interno, o PS beneficia de quase quatro anos de estabilidade política que Bloco e PCP viabilizaram. Apesar de algumas imagens de marca, como a subida do salário mínimo, o combate à precariedade no Estado ou a tarifa social de energia, não terem sido iniciativa de António Costa, será sempre o governo que usará os louros da sua aplicação. Este clima de popularidade e a crise da direita poderão ser suficientes para que o PS tenha uma vitória confortável nas legislativas.
Daqui o difícil duplo registo que o Bloco deve cultivar. Não pode fazer uma rutura total com o PS e o seu governo, porque votou favoravelmente quatro orçamentos e é autor de algumas das suas medidas. Precisa de reclamar aquilo que lhe cabe e é favoravelmente acolhido pelos trabalhadores. Mas tem de acentuar a excecionalidade das circunstâncias que geraram os acordos do governo e mostrar, pelo confronto. uma alternativa radical à social-democracia.
Na preparação do ciclo pós-eleitoral, o Bloco tem de manter a ideia de utilidade política que conquistou neste curso recente. Isso só será possível se se revelar disponível para integrar soluções que envolvam a restante esquerda e apliquem um programa capaz de provocar transformações estruturais na legislação laboral, no controlo público de setores fundamentais, no investimento público ou na reestruturação da dívida externa. Se este programa não for acolhido, o Bloco deve preparar-se para fraturar o PS no decorrer da sua governação neoliberal.
Esta gestão subtil, mas exigente terá de estar também presente no processo eleitoral das regionais da Madeira. Não podemos ser insensíveis à bipolarização entre PSD e PS e à experiência inédita de expulsar a direita do poder que controla há mais de quarenta anos. Deveremos mostrar que somos úteis para esse objetivo, mas teremos também de criar um caminho próprio que nos distinga claramente do PS e evite colagens desnecessárias, mostrando que Cafôfo se está a rodear dos "donos da Madeira" e se prepara para governar como a direita. E também enunciar as condições que poderiam gerar o apoio do Bloco a um novo governo.
PRIORIDADES DO PRÓXIMO PERÍODO
O reaparecimento do protagonismo das lutas dos trabalhadores em Portugal mostrou as potencialidades e os limites da intervenção do Bloco nesta área fundamental. As greves dos estivadores paralisaram atividades económicas importantes e impuseram vitórias ao patronato que não se viam há muito. E mostraram também a margem de manobra que um sindicato independente e combativo pode ter na condução das lutas. Esta constatação é, até certo ponto, válida para a atuação de outros sindicatos não-alinhados com a maioria da CGTP, ou sequer alinhados com qualquer central sindical, como nos enfermeiros ou professores.
Isto evidencia a necessidade e a viabilidade de participar ou criar sindicatos que ultrapassem a falta de democracia e de combatividade do sindicalismo dominante e, por extensão, a urgência de reagrupar as nossas forças na área do trabalho em torno de uma corrente sindical alternativa com uma política própria. Esta é uma tarefa a que o Bloco deve dar grande prioridade no imediato, na sua intervenção e na organização dos seus quadros, dada a falta de investimento que esta frente tem sofrido.
De uma outra forma, a luta da Autoeuropa contra a extensão dos horários de trabalho aos fins-de-semana, revelou a importância na economia nacional associada ao papel dos trabalhadores das grandes empresas, mas mostrou também a falta de uma direção da luta capaz de mobilizar em torno de um caderno reivindicativo combativo. Tudo isto aconteceu numa empresa onde o Bloco tinha a maioria da Comissão de Trabalhadores e a perdeu.
O Bloco deve criar núcleos para organizar a intervenção dos seus aderentes nas empresas que se articulem com as concelhias e as distritais e, sempre que possível, coordenar a intervenção nos sindicatos com a das Comissões de Trabalhadores. O trabalho nas empresas não pode ser um detalhe da nossa intervenção, tem de ser uma prioridade para se ganhar enraizamento na sociedade.
Nesta linha também o Bloco precisa de dar mais atenção à intervenção nas localidades, ligando o trabalho dos eleitos nas autarquias com a intervenção no movimento associativo e nas empresas, alargando o trabalho das concelhias com o objetivo de dar mais consistência às nossas reivindicações e mais eco das necessidades das populações.
Finalmente o Bloco deve dar grande prioridade à formação de novos quadros políticos, que escasseiam cada vez mais, única forma de assegurar a desejada renovação e a qualificação da intervenção política.